Tempestade de ideias

Lia Ernst Hans Gombrich. Encantado com Leonardo da Vinci, ao anoitecer de uma tarde amazônica. Absorto. Os olhos em “Estudos anatômicos”, laringe e perna, de 1510. Quanta perfeição! Pura arte e anatomia nunca vistas. A última ceia. Mona Lisa. Os olhos deslizam das páginas. À esquerda. Clarões, nuvens, luzes. Sinalizadores do pássaro de aço que da Vinci idealizara. Os olhos voltam-se para as páginas. Mona Lisa. Uma força me impele a erguer os olhos. Duas mãos estendidas por sobre a poltrona 10A chegam a me assustar. O sinal da presença humana tirou-me dos momentos de transe total nos quais vivia cada detalhe de Gombrich sobre da Vinci. A respiração oscilou o ritmo. Um rosto de menina surge entre aquelas mãos, na altura dos cotovelos, lança-me um sorriso terno, infantil e diz; “Tio, porque o senhor deixa aquilo aberto?” e dirige o braço direito para a janela da poltrona 11A na qual eu estava sentado. “É para olhar a nuvens e curtir essa sensação de liberdade”. Sorri. Ela sorriu. “Tomei um susto com as suas mãos”. Ela abriu ainda mais o sorriso. CONTINUA!

domingo, 31 de outubro de 2010

A folha encarnada

Lá estava eu na porta do mercado municipal, encostado em uma das bancas, esperando para ser atendido. Era a banca que vendia material escolar e artigos de papelaria. Seu Manuel, um português de uma certa idade, não perdia uma chance de fazer um gracejo com a freguesia. E eu ficava ali só prestando a atenção no movimento. De repente, um cabôco chega meio arrogante e vai logo gritando:
- Quero seis folha de papel de seda incarnada.
- Não tenho encarnada, a vermelha não serve? - perguntou seu Manuel com cara de sério.
- Não! Eu pedi encarnada e quero encarnada.
- Encarnada e vermelha é a mesma coisa. Só perguntei para testar sua inteligência?
- Entonce tá achano qui eu sou burro? Acha qui vou levá gatu pur lebre? Vermelha é vermelha, incarnada é incarnada.
- Mas senhor....
- Ora, ora, ora, .....sinhô uma ova. Tá querenu me enganar. Sou um cabôcu vividu. Conheçu bem as cor. Num é um vendedor de porta de mercadu qui vai mi inganá.

sábado, 30 de outubro de 2010

O limite da coragem (Final)

Aquele, porém, saiu acompanhado. Eu estava na sala de jantar e vi quando o Alfredo passou, já com a bermuda no meio das pernas, toda suja no fundo. Não passa 20 segundos no banheiro e sai, tropeçando na bermuda e quase caindo por cima da mesa.
- Sooooooooccccccccooooooooroooooooooo!
Soltou um berro que toda a cidade deve ter escutado. A diarréia transformou-se em vazamento ali mesmo. Olhos esbugalhados, o Alfredo não conseguia falar. Abria boca e apontava para o banheiro, sem conseguir emitir nenhum som.
Entrei no banheiro e vi uma barata se debatendo na água do vaso sanitário. Foi aí que percebi até aonde vai a coragem de um homem.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O limite da coragem (Segunda parte)

Toda vez que o Alfredo dizia que vinha para Sena Madureira, eu ficava contando as horas para ouvir novas histórias. Quando ele chegava, não podia faltar um pudim de leite, duplo.
Naquele dia, o Alfredo tinha acabado de chegar, por volta das cinco e meia da tarde. Foi na casa do tio Walfredo, antes de ir lá pra casa, e comeu um pudim inteiro. Ao chegar em casa, para não magoar minha mãe e muito mais para satisfazer a gula, Alfredo comeu a metade do pudim duplo que ela sempre fazia quando ele chegava. Não demorou muito e o Alfredo levanta soltando um tremendo peido, como ele sempre fazia. Todas a vezes que chegava em Sena, mal pisava na varanda, o Alfredo soltava um peido a cada passo e o Paulo Guedes respondia com outro. Eram três minutos de guerra.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O limite da coragem (Primeira parte)

- Enfrentei uma quadrilha de assaltantes apenas com um revólver 38.
- Puxa, primo. Você é mesmo corajoso.
- Não há na face da terra animal que me faça correr.
Quando o Alfredo chegava em Sena Madureira era assim. Cada uma história de deixar encantado qualquer criança que morasse longe da cidades grandes e passasse a gostar de ler livros de bolso(aqueles de faroeste americano escrito por brasileiros). Era Santillana pra lá. Miguel Lafuentes Estefania pra cá. Jurei que um dia seria escritor. E o Alfredo carregava nas tintas. Meus olhos brilhavam.
- Rapaz, tu não imaginas o pique que o cara deu quando eu coloquei o 38 na cara dele. Acho que ele tá correndo até hoje, sem olhar pra trás.
- Puxa vida!
- Outro dia apareceu uma cobra lá no quintal de casa. Peguei a faca e cortei a bicha todinha. Ficou parecendo picadinho.
- Como uma pessoa consegue ser tão corajosa? Acho que eu não enfrentaria nem um rato.
- Ratos? Cansei de matá-los só de susto. Eles iam passando, eu dava um grito e os bichos caiam ali mesmo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O Ismeril (Final)

Passei a semana inteira doido chegar em Santa Rosa e ver a quantas andava o Esmeril. Sexta-feira, porém, a professora passou tanto dever-de-casa que a minha pescaria foi parar no brejo. À noite, fui à casa do Tiotoim para saber do Esmeril. Nem bem cheguei, fui logo gritando:
- Tio, o Esmeril morreu?
- Eu não te disse que anzol era sobremesa pra ele. Arranjei um cabo de aço e prendi o bicho hoje, assim que cheguei lá.
- Não me diga que o Esmeril roeu ....?
- Exatamente. Ele comeu o cabo de aço todinho e se soltou.
Espantado, voltei pra casa pensando (porque ninguém podia duvidar de um Tio):
- O danado desse touro faz mesmo juz ao nome. Ah se faz!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O Ismeril (Segunda parte)

Quando voltávamos com uma lata cheia de minhocas, nossas iscas prediletas (melhor dito, prediletas dos peixes), o Tiotoim grita:
- Corre Gilson! Pega os anzóis se não o Ismeril come tudo.
- Xô, xô, xô. Sai pra lá touro - disse eu tentando afastar o garrote.
Ele levantou aqueles enormes olhos, ficou me fitando enquanto ainda mastigava os últimos anzóis.
- Então é por isso que o nome dele é Esmeril?
- É sim. Ele come tudo. Não tem corda que dê jeito. Ninguém mantém esse bicho preso.
- Dessa vez eu duvido que ele escape. Comeu quase cem anzóis!
- Ele não vai sentir nada.
- Tio, porque o senhor não arranja um cabo de aço e prende esse touro? Aí eu quero ver se ele é mesmo Esmeril?
Sem os anzóis, nossa pesca tinha ido pro brejo. Fomos colher goiabas e dá uma passada na casa do Tio Sandoval. Lá pelas cinco da tarde voltamos pra casa, sem nenhum peixe. Quando contei a história do Esmeril em casa, o Paulo Guedes soltou aquela gargalhada, como quem diz:
- Que cabra mentiroso. Ele saiu melhor que a encomenda. Em pouco tempo tá ganhando de mim.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O Ismeril (Primeira parte)

Tiotoim e eu éramos parceiros de pescaria sempre que ele não estava matando mosquitos, como “matamosquitos” da hoje Fundação Nacional de Saúde. Antônio Almeida, marido da tia Francisca, para nós era o Tiotoim. Para a maioria dos moradores da cidade, era um Guarda da Malária. Quando voltava do alto, como ele chamada a subida para os seringais, sempre trazia um agrado.
- Olha o jabuti que eu trouxe - dizia ele no tempo que o Ibama deixava.
- Olha como essa paca tá gorda - chegava o Tiotoim com outro presente.
Nosso divertimento era mesmo as pescas de ispinhel, em Santa Rosa. Lá, nós tínhamos a Boneca, uma vaca com uma pinta branca nas ancas e o Tiotoim um garote de nome Ismeril.
- Qui diabu de nomi isquisitu? - Eu me perguntava sem nunca matar a curiosidade.
Naquele domingo, chegamos em Santa Rosa, encostamos a canoa e fomos cavar minhocas. Deixamos os espinhéis jogados no terreiro. Bem próximo ao local, o Ismeril pastava, como se nada tivesse acontecendo.

domingo, 24 de outubro de 2010

Vô voador (Final)

Lá vinha meu avô na sua viagem imaginária. Eu ficava ali a olhá-lo e a pensar:
- O vovô ficou doido. Está completamente doido.
Ele não reconhecia nenhum dos filhos nem os netos. Mas ninguém podia falar um tico que o cinturão comia no couro. Na minha inocência, tinha pena dele, cheguei a pensar que ele não escaparia daquela. Faz vinte anos e ele está vivinho da silva. Então, o jeito era ficar olhando as travessuras do vovô e rindo até o calção ficar molhado.
- Vruummmmmmmmmmmmmmm... vrummmmmmmmmmmmmmm
- Bota a prancha!
Ele rodava a mão como se estivesse acelerando e apertava o pedal, imitando uma mudança de marcha.
- Sai da frente!
- Vruuummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
Com certeza, ele acabara de atravessar o rio, voando na sua lambreta.

sábado, 23 de outubro de 2010

Vô voador (Terceira parte)

- Um dia desses, quando nós morava ainda em Santa Rosa, o pai e o vô vieram pra Sena fazer compras. Quando entraram na canoa, no porto da tia Cloé, o pai lembrou que tinha esquecido o sal. Nessas alturas, a canoa já estava deslizando rio acima. O pai tentou chamar a atenção do vô e disse:
- Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Nessas alturas, a canoa já estava pra lá da balsa.
- Uquiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
foooooooooooooooooooooooooooooiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Vieiriiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnha?
- Isquiiiiiiiiiiiciiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii u saaaaaaaaaaaaaaaal.
Tinham acabado de encostar a canoa em Santa Rosa.
Cácácácácácácá. Ah, ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah,ah.........
Todo mundo dobrava o bucho de rir. A história do Fidelis me fez lembrar de um tempo que o vô João, acometido de uma doença rara, que nenhum médico conseguia diagnosticar, resolveu pilotar uma lambreta velha, que ficava na varanda da casa da tio Clóe, bem de frente para o rio.
Naquela época, o juízo do vô não tava batendo bem. Ele nunca podia ficar sem ninguém por perto pois se danava a falar e a fazer besteira. Subia na lambreta e:
- Vruummm, vrummm, vrummm - fazia um barulho com a boca como se tivesse botando a bicha pra funcionar.
- Vrummmmmmmmmmmmmmmmmmm..... vrummmmmmmmmmm

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Vô voador (Segunda parte)

À medida que rezava, enfiava a agulha no pedaço de pano como se, com aquele gesto, estivesse costurando o músculo distendido, conhecido como “carne trilhada”. Jogadores de futebol, crianças traquinas, enfim, quem sofria qualquer espécie de luxação, encontrava a cura com a vó Ana.
Com um pé de vassourinha na mão e o mesmo gesto na hora da reza, sempre próximo da porta ou da janela, curava quebranto, espinhela caída, vômitos, diarréias... Não havia um neto que não quisesse estar com a vó Ana. Era a vó mais querida da família. Vô João Joaquim, sempre na balsa, no dominó ou com as mulheres. Hoje, com mais de 80 anos, viúvo, se queixa de que não nega fogo. Só gosta de estar cercado de meninas bonitas, enquanto joga sua sinuca. Nunca senta em uma mesa de dominó com os filhos ou com os netos, mas dá seus palpites:
- Vvvaaaaiiiiiii jjjooogggaaarrr eeerrraaadddooo aaasssiiimmm...
- Vô João, o sinhô nem vem jogar porque do jeito que fala arrastado, joga a primeira pedra agora e a outra só nove horas da noite - brinca o Fidelis, filho do tio Vieirinha, outro que mantém o hábito do pai: não joga quando os filhos estão jogando.
Vieirinha e vô João são muito parecidos, até no jeitão arrastado de falar. Se vô João não fosse cearense, diria que ele era baiano, e o baiano com a fala mais arrastada que já vi. O Fidelis não perde uma chance de tirar sarro da cara do pai e do avô.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Vô voador (Primeira parte)

Santa Rosa. Santa vó. Santo vô. A vó Joana se foi. O vô João está firme, do alto dos seus 80 e poucos anos (é tanto tempo que nem lembro a idade). De Santa Rosa, sua colônia, para Sena Madureira, sua cidade, vó Ana, como nós a chamávamos, era considerado uma santa por boa parte dos moradores de Sena.
- Do que é que eu te curo?
- Carne triada
- Do que é que eu te curo?
- Carne triada
- Do que é que eu te curo?
- Carne triada
Quando alguém sofria alguma torção, algum problema muscular, procurava a vó Ana. Ela pacientemente, pegava uma agulha, ficava próximo a uma janela ou a uma porta, uma exigência da qual nunca abria mão, para a reza poder ter efeito e o mal ser mandado para fora da pessoa doente e da casa. Ela fechava os olhos, se concentrava e movia os lábios como se tivesse invocando a ajuda de Deus para que, através dela, obtivesse a cura.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O pai-coragem (Final)

Talvez como uma forma de compensação pelos porres que tomava e todo o dinheiro da casa que gastava com cachaça ou com Conhaque Presidente, que ele tomava como que toma cerveja “socialmente”, hoje em dia.
Nunca gostei de perder. Pasmado coma coragem do meu pai, que apesar de estar cheio da cada, atravessou o rio, preparei-me para fazer o mesmo. Pus o pé na ponta do tronco e vi o bicho afundando, de mansinho, sumir nas águas do rio. Olhei para ver se o tronco não emergia lá na frente, e nada.
Papai ficou verde, amarelo, vermelho... e começou a suar frio. A bebedeira passou imediatamente. Por muito tempo vangloriava-se da proeza. Sem contar os detalhes e o medo que teve após descobrir que passara por cima da cobra.

O pai-coragem (Segunda parte)

Quando via um dos filhos, tentava sempre fingir-se de sóbrio e demonstrar coragem. Naquele dia, ele queria porque queria atravessar o rio para ir ao roçado da tia Cloé. Fazer o quê ninguém sabe. Afora os paletós e as calças que fazia como alfaiate, Paulo Guedes gostava mesmo era de cachaça e de música.
- Vou atravessar por cima desse tronco.
- Pai, o que é que o senhor que fazer do outro lado?
- Vou ajudar sua tia. Pra vocês não dizerem que eu não pego no pesado.
- Mas pai, o senhor já bebeu de novo.
- Eu não estou bêbado. Só tomei umas cervejinhas.
Ele sai meio cambaleante. Chega próximo ao suporto tronco que atravessava o rio de um lado para o outro, pois estava em época de seca, toma impulso e diz:
- Meu filho, agora eu vou.
Passa como uma flecha para o outro lado do rio, com uma incrível precisão, que só os bêbados conseguem.
- Venha meu filho. Seu pai já passou. Agora é a sua vez. Duvido como você não consegue fazer o que eu fiz.
Apesar dos porres, quando encontrava a gente, papai parecia uma criança. Estava sempre querendo disputar alguma coisa. Tentava brincar, nos alegrar.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O pai-coragem (Primeira parte)

Contavam os antigos habitantes de Sena Madureira que, no rio Yaco, em todos os locais onde o barranco caía era porque a Cobra Grande estava dormindo. Esses locais eram chamados de salão. Eu sempre pensei que o nome salão era uma sala grande, onde a cobra dormia, embaixo da água. O salão mais famoso ficava em frente da cada da tia Cloé. Lá de cima do barranco, a gente via as catraias como se fossem pequenas folhas, atravessando o rio. Quando o rio secava, ficava, no máximo com dez metros de largura.

Naquele local, do outro lado do rio, tia Cloé possuía um roçado. Ela plantava arroz, feijão, melancias... e outros produtos que davam para garantir a sobrevivência dos seus 15 filhos. Àquela época, quanto mais se tinha filho mais havia quem ajudasse no plantio e na colheita. Toda nossa família, principalmente a da minha mãe, era formada por pessoas humildes e muito pobres.O meu pai, que veio de uma família com mais posses, tocava muito saxofone e era um irreverente pau-d’água. Não perdia uma chance de encher a cara e sair pela cidade.

domingo, 17 de outubro de 2010

Noite de terror (Final)

Como o prefeito, embora da Arena e eu do MDB, sempre fora meu amigo, acompanhei, de longe, sua trajetória. Ele saiu correndo, desceu o barranco, pulou uma cerca de arame e a boca da calça ficou presa. Corri para auxiliá-lo. Cheguei perto e vi o homem todo mijado, sem olhar para trás, aos gritos:
- Socorro, pelo amor de Deus. Me soltem. Sou o prefeito da cidade.
Ao chegar perto, tratei de acalmá-lo:
- Excelência. Ninguém o segura. Foi só o arame que prendeu a sua calça.
Ele ficou todo sem jeito, tentando esconder as partes da calça que estavam mijadas. Não disse uma só palavra, ainda dominado pelo medo.

sábado, 16 de outubro de 2010

Noite de terror (Segunda parte)

Eu achava muito bonito aqueles homens, de paletó e gravata, o suor pingando do rosto. A multidão ia ao delírio quando surgiu uma promessa que, nós meninos, dada nossa experiência em outros comícios, sabíamos mais do que ninguém que era falsa. Sempre fui apaixonado por política. O calor dos discursos me fez sonhar ser, um dia, um homem capaz de seduzir as pessoas com o poder da oratória.
Quando abri os olhos e parei de sonhar, todos já haviam discursado. Chegara a vez do nosso prefeito. Muito irreverente, gestos mansos e delicados, fizeram o povo espalhar boatos maldosos a respeito da masculinidade do prefeito. Nunca liguei para aquelas conversas, sempre fui amigo dele e ele sempre me respeitara. Eu só o tratava por “Excelência”, talvez até com uma ponta de sacarsmo.
Aquele era um dos maiores comícios da Arena, como em outras épocas: os comícios da Arena lotadíssimos, mas a vitória, em Sena Madureira, era do MDB. A presença do público deve ter deixado o prefeito empolgado:
- Meu povo.... Estou aqui para dizer....
Um gaiato emenda, lá do meio da platéia:
- Que sou um tremendo boiola.
O pau cantou feio. Os “colegas” do prefeito começaram a gritar que aquilo era uma falta de respeito. Que iriam denunciar o preconceito às autoridades, que, àquela altura já desciam do palanque, tentando se proteger, enquanto a confusão aumentava. O pau comeu e era gente correndo para todos os lados.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Noite de terror (Primeira parte)

Quando eu tinha por volta de 13 anos, a agitação dos comícios era nossa maior diversão. Eu, Besouro, Fidelis, Gilmar, Gilberto, Marco Sampaio, Chico. A turma toda ia admirar o discurso dos políticos. Conhecida por ser um reduto de vitórias do MDB, a cidade, considerada município de Segurança Nacional, conheceu a democracia mais tarde que as outras. Os prefeitos eram sempre nomeados pelos homens fortes do regime e eram da Arena.
Era época de eleição para o Senado. Oscar Passos não perdia uma. Naquela vez, porém, o prefeito da cidade, um arenista metido a vencedor, resolveu fazer um comício do “outro lado”, como era conhecido o segundo distrito da cidade. Nem lembro se a intenção era eleger Jorge Kalume.
O comício foi badalado em todo o Estado. No dia do acontecimento, lá estava eu para acompanhar os fatos. Renomados políticos do Estado se fizeram presente. Era um amontoado de deputados federais, estaduais, prefeito e o governador.

O telefone (Final)

Os dias se passaram e seu Madeira sempre aprontava das suas ao telefone. Naquele dia, viu que faltava pregos no estoque e resolveu fazer o pedido por telefone.
- Alô, telefonista. Me liga cum a fábrica Aço Forte, em Sum Paulu.
- O senhor desliga o telefone. Logo que eu completar a ligação eu chamo.
Seu Madeira fica impaciente. Estava louco para ser o primeiro homem da cidade a fazer uma ligação interurbana. E logo com São Paulo. Era de deixar qualquer um orgulhoso.
Trinlim... trinlim...
- Alô, quem tá falanu aí?
- Sua ligação, seu Madeira.
- Alô, é da Açu Forti?
- Sim, o que o senhor deseja?
- Queru dizer qui tô falanu da minha loja, aqui no Acri. In Sena Madureira.
- Tudo bem, mas nós vendemos pregos. O senhor deseja algum?
- Quéquiéissu moçu? O sinhô acha qui eu gostu dessas côsa?
- Desculpe-me. O senhor está entendo mal?
- Vamu deixar de tró-ló-ló i i au qui interessa. Queru fazê uma incumenda de pregu. Mi manda umas duzentas caixa.
- De qual?
- Di pregus, ora essa!
- Quero saber o tamanho dos pregos?
- Ah sim! Agora tá ixplicadu.
Seu Madeira põe o telefone embaixo do braço, põe as mãos juntas como se fosse rezar. Então, vai abrindo as mãos e grita:
- U pregu é maiômenus destamanhu.
Ele ia abrindo as mãos até onde imaginava ser o tamanho dos pregos. Na certa, deve estar esperando a entrega do pedido até hoje.


quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O telefone (Quarta parte)

**********
A conversa do seu Madeira com o funcionário da TELEACRE passou a fazer parte do folclore da cidade e logo um engraçadinho resolveu tirar um sarro do velho.
Trinlim... trinlim...
- Alô, quem tá falanu aí?
- É da TELEACRE, estamos em testes e queremos que o senhor siga as nossas instruções.
- Qui diachu! A droga dêssi telefone só toca pra fazer testi. Mas podi falar.
- Onde o senhor está falando tem um fio todo enrolado e fino?
- Tem sim sinhô.
- Pois bem, o senhor vai puxando, vai puxando....
- Num tá venu qui eu já puxei tudu?
- Quando tiver bem duro o senhor avisa.
- Num dá mai nem pra isticar. Tá bem durinhu.
- Está bem durinho mesmo?
- Num tá venu qui tá, homi?
- Então o senhor já sabe o que fazer com ele.
O engraçadinho bate o telefone, do outro lado da linha. Com o fio esticado na mão, Seu Madeira nem percebe, inicialmente, o que o cara quis dizer. Mas logo se dá conta:
- Disgraçadu. Tá querenu tirá sarru da minha cara.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O telefone (Terceira parte)

- Ora essa. O telefone é branquinhu, tem um fiu e essi negóçu que eu tô falanu. Me admiru de ti, qui trabáia na TILEACRE e num sabi o quié um telefone.
- Está bem, seu Madeira. Já ouvi demais. Ponha o telefone no gancho.
Seu Madeira olha para um lado, olha para o outro, e nada de ver um gancho.
- Iscuti aqui moçu. Qui ganchu?
- Bem aí na sua frente.
- Ah sim! Agora eu vi.
Ele vira um gancho onde pendurava as chaves, passou o fio do telefone pelo gancho e continuou:
- Jábutei.
- Como já botou se ainda estamos falando?
- Num tá venu qui eu pendurei o telefone no ganchu das chavi?
- Muito bem, seu Madeira, até logo.
- Inté.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O telefone (Segunda parte)

- Não precisamos do telefone. Basta o senhor responder a algumas perguntas.
- Pois tá bom homi de Deus. Fale logo? Mas isperi um pouqinhu. Vou avisá os clienti.
Só para se mostrar, seu Madeira chegou próximo ao balcão e disse:
- Aguardi só um piquititu de tempu. Tô atendenu o telefone, já vorto.
De volta ao telefone, grita:
- Vamu logo cum essa istóra.
- Como está chegando a minha voz?
- Bem. Um pôcu grossa. Se ocê é, num discunfiei de nada.
- Quero saber se o senhor está escutando direito?
- Da úrtima veis que fui ao médicu num deu nada. Tô cum dois urvidu bão.
- Não quero saber do médico, quero saber do telefone.

domingo, 10 de outubro de 2010

O telefone (Primeira parte)

Sena Madureira não era mais uma cidade perdida no fim do mundo. Com a ajuda de uma telefonista, era possível falar com o mundo inteiro. As primeiras linhas telefônicas estavam sendo inauguradas. Ainda era uma fase de testes. Seu Madeira, por ser o homem mais rico da cidade, comprou logo o seu. mandou que fosse instalado na loja, bem na frente do balcão. Assim, enquanto atendia as pessoas, poderia exibir a novidade.
Trinlim... trinlim...
- Alô, quem tá falanu aí?
- Aqui é da TELEACRE. Estamos fazendo um teste com o seu telefone.
- Vocês num tão venu qui eu tô cum’a loja cheia. Mas tá bom. Podim vim pegá e levá pra testá.
Ele bate o telefone e volta a atender o balcão. Não passa dois minutos:
Trinlim... trinlim
- Alô, quem tá falanu aí?
- É da TELEACRE, seu Madeira.
- Pensei que já tivesse vinu buscar o telefone pra testá?

sábado, 9 de outubro de 2010

Mundico das melancias (Final)

Chega o dia da eleição. Quem não ia ao fórum, acompanhava a apuração pela rádio A Voz da Cidade, do Floriano. Em casa, ficávamos acompanhando a apuração, de caneta na mão, contando os votos do tio Zé Vieira. Os votos que o papai tinha prometido ao Mundico, eram todos dele.
Terminada a apuração, começam os comentários. Nosso primo Dilson Tamburini, filho do tio Rinchote e da tia Olívia, não deixou de ser gozador até hoje. Todas a vezes que passava lá em casa, tirava um sarro de alguém.
- Paulo Guedes! Paulo Guedes! - ele gritava, à medida que ia entrando na casa. O coitado do Mundico das Melancias ganhou o que a Luzia ganhou na capoeira. Viu a contagem dos votos dele? Parece que o votos dele estavam sendo contados pelo porco.
- Como pelo porco, Dilson?
- Era só hum, hum, hum, hum.
- Rá, rá, rá, rá, rá, rá, ráááááááááááááááá’!
Todo mundo ria a valer quando, na esquina da rua, aprece o Mundico das Melancias, cabisbaixo.
- Parem de rir - gritou o papai - o Mundico vem aí.
Ele se aproximou. Ao ver aquelas quatro lindas crianças, brincando alegremente no terreiro, fez apenas um comentário:
- Fôrum esses os votu qui prometerum pra mim.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Mundico das melancias (Segunda parte)

- Olha lá heim Paulo. Vou fazer espera na boca da urna pra vê se votarum em mim mermo. Déci as seis que eu pagu.
O que o Mundico não sabia era que, dos seis votos prometidos, quatro não seriam dele tão cedo. Nós gostávamos dos comícios. Toda eleição era uma festa. A diversão das crianças do lugar era ouvir os discursos inflamados dos candidatos. Naquele dia, fomos especialmente para ouvir a fala do “nosso” candidato.
- Amigos de Sena Madureira. Essis cara que ficum dizenu qui eu num tenhu curtura pra ser viriador diviam de mi isquecer, pois quem tem cu pra batucada é saracura.
- Muito bem! Já ganhou! Viva! Mundico, Mundico!
A multidão dava corda e Mundico se empolgava.
- Brigadu, brigadu. E tem mais. Garantu pra ocês que, se eleito for, ninguém, mars ninhum tantinho de gente vai mais durmir em cama de pau duro.
- Ôba! Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!

Mundico das melancias (Primeira parte)

Raimundo era um vendedor de melancias dos mais competentes de Sena Madureira. Todos na cidade o conheciam por Mundico das Melancias. De tanto andar pelas ruas aos gritos de “olha e melancia, olha a melancia”, Mundico cismou que deveria ser vereador. Naquele ano, conseguiu uma sigla, que já nem me lembro mais qual era, mas só podia ser Arena ou MDB. Mundico já não vendia apenas melancias. Ele era o novo produto.
Meu pai não perdia uma chance de encher a cara. Ainda mais se encontrava alguém que pagasse uma canas pra ele. Já meio lombrado, em um dos bares do mercado municipal, Paulo Guedes, chama o Mundico que, santa ingenuidade, não conhecia todas as pessoas lá de casa.
- Mundico, Mundico. Pagas seis cervejas e tens seis votos lá em casa.
- Paulo, num entru nessa não. Me dá o loca, a seção e a zona adonde todos ocês votam.
Paulo Guedes não se fez de rogado. Inventou, na hora, uns números que deixaram Mundico não muito crente.

Mundico das melancias

Raimundo era um vendedor de melancias dos mais competentes de Sena Madureira. Todos na cidade o conheciam por Mundico das Melancias. De tanto andar pelas ruas aos gritos de “olha e melancia, olha a melancia”, Mundico cismou que deveria ser vereador. Naquele ano, conseguiu uma sigla, que já nem me lembro mais qual era, mas só podia ser Arena ou MDB. Mundico já não vendia apenas melancias. Ele era o novo produto.
Meu pai não perdia uma chance de encher a cara. Ainda mais se encontrava alguém que pagasse uma canas pra ele. Já meio lombrado, em um dos bares do mercado municipal, Paulo Guedes, chama o Mundico que, santa ingenuidade, não conhecia todas as pessoas lá de casa.
- Mundico, Mundico. Pagas seis cervejas e tens seis votos lá em casa.
- Paulo, num entru nessa não. Me dá o loca, a seção e a zona adonde todos ocês votam.
Paulo Guedes não se fez de rogado. Inventou, na hora, uns números que deixaram Mundico não muito crente.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

João Tubarão (Final)

A moça nem ligou. Ficou tomando seu banho de sol e entrando na água, quando bem tinha vontade.
- Fiquei esperando para ter a certeza de que o tal João Tubarão, que eu ouvira falar muito mas que nunca vira, apareceria em casa de um ataque. O Velho Gama - ele gostava de falar de si de forma impessoal - tomou uma cerveja e ficou esperando. Observava a menina como um caçador que espera sua presa. De repente, ouve o grito:
- Socorro, por favor, acudam-me. Aaaaaaaaaaaaaaa.......
- Vi uma mistura de água e sangue subir, junto com a maré. Como surgido do nada, aparece um homem baixo e gordo, daqueles entroncadinhos que ninguém dá nada por ele. Pula n’água, mergulha e atraca-se com o tubarão, que ainda estava na fase de limpar as presas, após o almoço. Parecia uma cena de filma. Nunca vi uma luta tão feroz. O homem atracou-se com o tubarão, deu-lhe uma chave-de-braço, com a mão esquerda na mandíbula inferior e a mão direita na mandíbula superior, não demorou dez minutos para matar o animal afogado.
- Seu Gama, isso é espantoso.
- E não parou por aí. O homem parecia ter sede de vingança. Pegou o tubarão pelo rabo e o arrastou para a areia da praia. Pôs o pé direito na parte inferior da boca do animal e começou a arrancar todas as tripas do bicho.
- Em plena praia de Copacabana, seu Gama.
- Ora se foi, meu filho. Quando olhei para trás, todo o povo que estava na praia antes do alarme gritava:
- É o João! João Tubarão! É o João! João Tubarão!

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

João Tubarão (Primeira parte)

Seu Gama era um velho viajado. Apareceu em Sena Madureira e caiu na graça de todo mundo. Mentia mais do que o próprio Paulo Guedes. Mas ficava furioso de alguém ao menos insinuasse que as suas histórias não eram verdadeiras. O filme “Tubarão” era o sucesso das bilheterias nas cidades grandes e os comentários chegavam a Sena Madureira. Naquela noite, seu Gama resolveu relatar uma das histórias que testemunhara, no Rio de Janeiro.
- Uma jovem banhava-se tranqüila na Praia de Copacabana - seu Gama era um primor em Língua Portuguesa. Quando ouvia uma próclise em lugar de uma mesóclise ou de uma enclise, soltava os cachorros. Repentinamente, as pessoas começam a sair da água e a gritarem, aterrorizadas:
- Um tubarão, vimos um tubarão. Saiam já da água.